Episodes

  • Livralhada, alquimia, terror e verdade. Uma conversa com David Teles Pereira
    Oct 10 2025
    Desde a invenção de Gutenberg até ao actual quadro de proliferação absurda, dessa obesidade editorial que fez dos livros mais outra categoria entre os produtos de consumo, os séculos de lenta fermentação das linguagens e conceitos estão aí como destroços a flutuar à superfície de uma piscina, a saque para os fins de uma mitologia de bric-à-brac, tacanha, cavando uma fossa, um largo intervalo que poderia ligar um título de Dickens e outro de Balzac: Grandes Esperanças e As Ilusões Perdidas. Depois da engrenagem ter entrado em delírio com a ideia de progresso, sentimos que começa a esgotar-se até a promessa de sentido. O futuro viu-se absorvido pelo presente contínuo das infinitas mastigações distractivas, e tememos, com uma lucidez amarga, que o amanhã não seja senão uma versão ainda mais ignara disto mesmo. Abrir as redes sociais, acender um ecrã, deslizar o dedo por um fluxo interminável de imagens e frases truncadas produz hoje a sensação de que em toda a parte se rompeu o pacto social: regressámos ao estado de natureza, recaímos na barbárie luminosa do comentário instantâneo. A cada notificação, uma crispação; a cada opinião, uma faúlha de ódio. Alguns, como outrora advertira Sciascia, veriam nisto a erosão última da palavra escrita — o seu desgaste até à transparência, até que já nada nela resiste ao ruído e à velocidade. Existíamos — lêssemos ou não — dentro de uma sociedade literária, onde os argumentos, as formas de arquivo, as listas e até os modos de enunciação provinham do enredo dos textos, da composição e ordem que se alargava a partir das bibliotecas, como se ali estivesse o núcleo de uma trama com possibilidades de expansão até ao infinito. Mas as imagens… essas formas que serviam de ilustração, um esboço para catapultar o impulso ou um eco, começaram a reproduzir-se como uma praga, a invadir o centro, a degradar o eixo do imaginário, o seu movimento de rotação e translação, que acabou por se fixar, a realidade encadeada pelo seu substituto. Saturado, o olhar já não mergulha no interior em busca de uma alucinação estupenda, mas fica agarrado ao estímulo; já não lê, absorve-se. A narrativa dissolve-se em fragmentos visuais, o tempo perde espessura, e o mundo, reduzido a ecrã, já não se conta: actualiza-se. Como escreve José Emilio Pacheco no ensaio do qual partimos para esta reflexão, “um mundo sem leitura é um orbe em que o outro só pode surgir como inimigo”. “Não sei quem é, o que pensa, quais são as suas razões. E, sobretudo, não possuo palavras para dialogar com ele. Por isso, só me é possível percebê-lo como ameaça.” Hoje tudo reemerge com o brilho artificial de outra Disneylândia, como nostalgia daquilo que não vivemos e nunca foi nosso. Mas é pior do que isso: a nostalgia tornou-se uma função sistémica, uma engrenagem exasperada que anula o próprio passado, convertendo-o em matéria-prima para as retrotopias do presente. O que antes era memória transforma-se em decoração, em cenário temático de um mundo sem recordação. Não espantará, pois, que dentro de alguns anos surja um parque temático consagrado aos livros — simulacro final de uma experiência extinta. Entre nós, já se ensaiou essa utopia domesticada na aldeia literária de José Pinho, em Óbidos: gesto audacioso e melancólico, como quem ergue uma biblioteca dentro de um aquário. Não é possível falar destes assuntos sem enfrentar a dúvida sinistra: defender hoje o livro e a leitura não equivalerá, afinal, a reforçar a charanga, o enredo trapaceiro de uns e umas sempre à cata das verbas, dos fundos de desenvolvimento, ávidos por os converter em festivais de miragens concentradas, todos estes certames onde o culto do autor, exibindo-se como produto, obsta a que se leiam e discutam os textos? “Quando comecei a escrever, ensinaram-me que o eu era odioso; o elegante e o edificante consistia em empregar sempre o nós. No fundo dessa regra de boa conduta literária residia a ilusão de que existia uma comunidade de pessoas ilustradas ou que aspiravam a sê-lo”, adianta Pacheco. “Partilhavam um vocabulário, um código e algumas ideias gerais acerca daquilo que, neste domínio, constituía o bem comum.” Agora, o intolerável — e por vezes grotesco — é falar na primeira pessoa do singular, submergir nesse regime autobiográfico que fez da autoficção um modelo universal de salvação e comércio. Cada fragmento de vida converte-se em dogma, cada emoção em mercadoria moral, cada exposição em gesto de legitimação. O mundo exterior, os tantos que se sentem parte de uma comunidade privilegiada por aderirem a este regime mimético, participam do mesmo culto narcísico: repetem-se, confirmam-se, citam-se mutuamente como se a autenticidade fosse uma forma de poder. Assim, o “eu” transforma-se em tirania discreta — um império de pequenos despotismos sentimentais, onde cada ...
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    3 hrs and 21 mins
  • Os peixes solúveis e o despotismo rococó. Uma conversa com António Tonga
    Oct 4 2025
    Poucos se perguntam o que resta do homem, que é feito dele passados estes últimos dois séculos de abastardamento do espírito, esse ser cada vez mais inapto, que se enreda nas suas justificações, que se adapta seja como for, se safa, dê por onde, der, com essa sua capacidade de levar a vida inteira num longo estertor. Mas a alguém deveria intrigar esta estagnação dos órgãos, à medida que o horizonte se nos escapa, como vamos aperfeiçoando a nossa corrupção, as habilidades mesquinhas, a farsa, a sórdida trama, sempre neste embrutecimento das faculdades, cobrindo tudo com um sorriso petrificado. O instinto de sobrevivência deu lugar a um turvo ofício de entranhas, esses ser imensamente cautelosos, viciados no seu próprio terror, vítimas de uma subjectividade exagerada, que levam os seus negociando termos de forma a se esquivarem a qualquer encontro com o perigo. Deveríamos fazer um esforço por compreender o que vem a ser este ser sujeito a uma ocupação que o tornou tão profundamente servil, perfeitamente adaptado a uma ética inteiramente fundada sobre o valor mercantil, a honra do trabalho, os desejos comedidos, a brutalidade instintiva, e a morte, esta que nos segue tão de perto, e manca de pequenez em pequenez. “tornar-se tão insensível e portanto tão manejável quanto um tijolo é aquilo a que benevolamente convida a organização social”, diz-nos Raoul Vaneigem. Ele denuncia a imensa máquina de condicionar, e explica a ausência de um ânimo e de um enredo tumultuoso que favoreça a transformação com a falta de sinais inspiradores ao nosso redor. “Face à minha prisão actual, o futuro não tem interesse para mim.” No fundo, o capitalismo cria um conflito dentro de cada um de nós, uma divisão entre si e si mesmo. Temos sempre alguma justificação na ponta da língua, uma mentalidade de servos, habituados a serem sacudidos ao virar de cada esquina. Constantemente sujeitos aos interrogatórios, estamos sempre disponíveis para abrir o livrinho com a nossa contabilidade mais íntima. Repare-se na expressão, nos modos mais comuns, nesse constante ensaio com que cada um se desfia a si mesmo, como se estivesse a meio de algum desses exames de rotina, ou fazendo por se apresentar nos tantos concursos, providenciando sobre qualquer tópico uma opinião habilidosa, assumindo a pose de forma a oferecer o melhor ângulo a qualquer montra, como se a sua imagem estivesse a ser captada pelas câmaras, esse rosto de transcendental e eterna inutilidade que põe um tipo quando faz de produto. Vaneigem diz que o sentimento de humilhação difuso que nos persegue nada mais é que o sentimento de ser objecto. Em seu entender, não somos escravos dos nossos desejos tanto como o somos da crença na felicidade dos outros, “uma fonte inesgotável de inveja e ciúme que faz experimentar por intermédio do negativo o sentimento de existir”. “Invejo, portanto existo. Apreender-se com base nos outros é apreender-se outro. E o outro é o objecto, sempre. De tal modo que a vida se mede pelo grau de humilhação vivida Quanto mais escolhermos a nossa humilhação, mais ‘vivemos’, mais vivemos coma vida arrumadinha das coisas. Essa é a manha da reificação.” Isto explica todos esses esforços empreendidos para mascarar o nosso desespero. O que é mais doloroso é pressentir esta culpa face a si mesmo, todas as nossas tentativas para dissimular o esfarelamento dos valores, a ruína das existências, a inautenticidade dos nossos gestos. Por isso, no entender do autor de “Arte de Viver para a Nova Geração”, “as crises que sacodem o mundo não se diferenciam fundamentalmente dos conflitos em que os meus gestos e os meus pensamentos se defrontam com as forças hostis que os travam e os desviam”. O capitalismo significa um colapso da própria consciência humana. Se pudéssemos ganhar alguma distância em relação a nós próprios, se nos escolhêssemos como inimigos, nada nos daria maior prazer do que cuspir nisso a que, por mera afectação, dizemos ser a nossa alma. Gostamos de manter o quarto na penumbra de forma a que as formas do lixo que nos acusa não se possam distinguir, e então admiramos os ecos de outro tempo, o tempo que já foi. Bate-nos uma saudade estúpida de um mundo capaz de produzir em nós algum temor, uma “saudade dos tempos da juventude antiga, dos sátiros lascivos, dos faunos brutais” (Rimbaud)… Voltamo-nos para esses reflexos e a pouca água que resta à superfície de alguns textos, e repetimos a estranha ordem de palavras que parecem ir além daquilo que somos capazes de sentir… "se viesse um homem ao mundo, hoje, com/ a barba de luz dos patriarcas, só poderia,/ se falasse deste/ tempo, só poderia/ balbuciar balbuciar/ sempre, sempre,/ só só" (Celan). O isolamento é o pior castigo e, no entanto, só através dele podemos fazer esta espécie de luto em relativa paz. “Para sobreviver à uniformidade que nos cerca, a única ...
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    3 hrs and 44 mins
  • Dos sem-terra aos porcos-mealheiros. Uma conversa com Paula Godinho
    Sep 26 2025
    Estamos a assistir nos nossos dias ao advento das primeiras gerações sintéticas. Seres que se pretendem ver desencarnados, a alcançar um plano de elevação que se prende com a hipótese de flutuar num plano etéreo no qual tudo será disponível, ilimitado. Mas como a internet já o demonstrou, esses oestes sem lei digitais são zonas onde há muito tudo foi já predeterminado. E se, como nos diz Bachelard, “querer, é querer o que não se pode”, esse é um campo de anulação dos próprios sonhos e das formas de resistência a partir do imaginário. Poderíamos mesmo sonhar desligados dos impulsos que o corpo nos oferece? Numa das melhores profecias sobre o inferno que nos aguarda, Borges lançou esta hipótese: “Sonhará um mundo sem a máquina e sem essa máquina, o corpo. A vida não é um sonho, mas pode chegar a ser um sonho.” Este sonho começa a configurar-se nos nossos dias, mas, longe de ser uma libertação, parece um projecto de anulação da experiência. O Talmude diz que mais vale um dia nesta vida que uma eternidade no mundo que se segue. Mas o facto é que a própria realidade começa a ser pensada cada vez mais como doença ou, pelo menos, como ameaça. Ora, para compreendermos esse além que hoje nos é prometido, devemos prestar atenção às fantasias mórbidas que por todo o lado saturam o nosso campo visual, deter um olhar cheio de suspeita diante desta sobre-imposição do design a todas as esferas da vida, num momento em que a aceleração dos efeitos de troca leva a que a desorientação geral sirva para reforçar os impulsos programadas. Assim, toda a incerteza, todos os elementos de fragilidade e auto-recriminação, bem como a sensação da falta de propósito das nossas existências, levam a que a interioridade e a própria consciência se tornem zonas demasiado dolorosas. Provocam uma vertigem com a qual estamos a deixar de saber lidar, restando este virar do avesso, esta tentação de buscar uma ordem de beatitude ao nível das superfícies. Num momento em que nos sentimos fulminados por esta devastação colectiva a que chamamos realidade, tudo nos empurra para dentro, para formas de isolamento, e o corpo torna-se o destino e parece consumir todo o quadro das nossas ansiedades. Dos cuidados constantes com a imagem às dietas e suplementos, ao esforço para atingir medidas ideais, o culto passou a ser exercido nos ginásios, nas mesas de operações, com as cirurgias e toda a panóplia de intervenções a assumirem o peso de uma nova liturgia. Bernard Andrieu escreveu que “o corpo é a nova religião do século XXI”: híbrido, desnaturalizado, sujeito a metamorfoses sem fim, tornou-se objecto de uma promessa de salvação. Em “Crimes do Futuro”, Cronenberg encena precisamente este culto: a carne aberta é o sacrário, os bisturis são as mãos sacerdotais, a beatitude já não se procura no invisível mas na pura visibilidade — no espectáculo do corte, na exibição da incisão, no êxtase do que a imagem retém e multiplica. A religião desloca-se do mundo espiritual para o terreno da estética, e esta é quase invariavelmente de ordem narcísica. O corpo submete-se inteiramente ao design, surge como interface. Baudrillard parece ter profetizado a forma como a simulação absorve o real até que o corpo não é senão um ecrã onde se projecta a ilusão da vitalidade. Em breve, e face a um horizonte definido pela carência, pela decadência, pela violência, pelo entretenimento extremo e por catástrofes ambientais desencadeadas por nós, já não haverá margem para nos reconciliarmos com a natureza, restando apenas a reprogramação infinita, a carne como software. As vísceras tornam-se design de interiores, um mobiliário íntimo a ser remodelado. Nega-se a transcendência, restando-nos a imanência absoluta da imagem, a vertigem de um narcisismo que se alimenta do vazio. Este culto do corpo pós-natural é a contrapartida simbólica da devastação planetária. Com o adensar da catástrofe, em vez de enfrentá-la, a energia é deslocada para a construção narcísica de uma pele artificial, de um rosto filtrado, de um corpo reprogramado. Multiplicam-se as próteses, desenhamos novos contornos, fazemos dele um laboratório de constantes mutações, um objecto de culto devotado à ilusão de permanência no regime das imagens. A operação cirúrgica devém assim sacramento, inscrição visível da fé na técnica, tatuagem de um mundo que só se reconhece no brilho do artifício. O paradoxo é que esta fuga não conduz a um renascimento, mas a uma duplicação infinita: o corpo já não é carne, é simulacro, vitrina, holograma de si mesmo. O humano apaixona-se apenas pela imagem que reflecte, já não pelo sopro da vida que a atravessa. Com tudo isto, a natureza perde consistência, é um ruído distante, um pano de fundo em dissolução. Ao mesmo tempo, toda a degradação planetária se traduz em espectáculo, e cada catástrofe ambiental...
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    3 hrs and 56 mins
  • Um neo-bolchevique na praia lusitana. Conversa com Arturo Zoffman
    Sep 19 2025
    Vamos falando como alguém a quem os dentes foram arrancados das gengivas, mas que, em vez de os cuspir, se dá a um trabalho desgraçado para que não lhe escapem da boca, para não os engolir, esperando a oportunidade de que lhe seja restituído aquele sorriso de antes. Mas quando ao certo? Apesar da insubordinação dos factos materiais contra a ordem fixa das coisas, que há muito estão reduzidas ao seu mero valor de troca, as palavras exprimem uma realidade que já não deveria precisar de ser explicada. Não fosse para interromper o modo estuporado de uma cultura que distorceu inteiramente a relação entre a vida e o pensamento. Todas as evidências parecem inúteis, pois buscamos nos outros uma audácia que nos falta a nós mesmos. Não deveria ser preciso, hoje, repetir o repto feito por Bataille na revista Contre-attaque, nos anos 1930, apelando a “violentos sobressaltos de potência” nascidos nas ruas contra a “impotência” das hesitações politiqueiras perante os movimentos fascistas. A verdade é que nos cansamos da nossa própria farsa indigesta, pois tanta exasperação em tentar instigar os outros revela, na verdade, como não estamos a conseguir convencermo-nos nem a nós mesmos. O próprio activismo não é, como já sabemos, mais do que uma renitência em graduarmo-nos através do nosso desespero, preferindo experimentar uma e outra vez a nossa impotência, aguardando que a catástrofe venha enfim tornar irrecusável tudo aquilo que fomos dizendo. “O activista mobiliza-se contra a catástrofe. Não faz mais do que prolongá-la. A sua precipitação consome o pouco de mundo que ainda existe. A resposta activista à urgência permanece ela própria no interior do regime de urgência, sem esperanças de o abandonar ou interromper”, lê-se em “Convocação”, um texto sem assinatura, na linha daquilo a que nos foram habituando os membros do Comité Invisível. Enquanto isso, se “as leis, códigos e decisões de jurisprudência existentes são suficientes para tornar punível qualquer existência, bastando para tal que sejam aplicados à letra”, é evidente que não queremos deixar de estar sob tutela, como se o sentido mais profundo que nos inquieta fosse apenas uma incerteza em relação ao plano, como se não conseguíssemos deixar de fazer as nossas birras de fedelhos, mas sem levar as coisas ao ponto de assumir a tarefa de nos governarmos a nós próprios. Habituámo-nos à previsibilidade da história, e aquilo que receamos acima de tudo é que se acabem os castigos. Custa-nos romper, assumir uma força de abjecção diabólica, deixar que a vaga dos sonhos que poderia arrastar-nos com ela nos leve a assumir algum acto irreversível. Por isso apenas flertamos com as influências ou ideias transgressoras. Já sabemos demasiado para o nosso bem. Sabemos como faltou sempre por aqui um conceito radical de liberdade, e que o liberalismo não passa de um regime anquilosado que, com a sua moral humanista, funciona como um perfeito álibi para continuarmos entretidos com as nossas denúncias, as nossas manifestações inofensivas, enquanto toda a comunidade é arruinada, e os grupos se vêem separados dos meios de existência e dos saberes que poderiam dar-lhes as condições de se emanciparem, desertando de vez. Enquanto isso prossegue “a devastação metódica de tudo aquilo que permanecia vivo na relação dos humanos entre si e com os seus mundos” (“Convocação”). Boa parte dos protagonistas envolvidos nas operações de mobilização já não iriam ser capazes de fazer mais nada se, por um milagre, se operasse a transformação que tanto dizem buscar. Quanto ao liberalismo, ganhou uma evidência pornográfica como o seu princípio axial é a ideia de que tudo deverá ser tolerado, tudo pode ser pensado e manifestado, desde que não afecte a estrutura da sociedade, nem ponha em causa as suas instituições ou o poder do Estado, o qual serve acima de tudo para sustentar a ficção policial em torno das formas de propriedade e da obscena acumulação de capitais nas mãos de muito poucos. “Por outras palavras, a liberdade de pensamento do indivíduo deve ser total, a sua liberdade de expressão também, mas não poderá esperar a concretização das consequências do seu pensamento no que respeita à vida colectiva”, lê-se nas páginas do opúsculo já referido. Parece-nos que 2025 é uma data que deveria estar situada no futuro, mas despertamos a cada dia forçados a reconhecer que estamos condenados a andar às arrecuas, sobretudo se tivermos em conta aquele ideal de liberdade que, segundo Breton, neste mundo, só à custa de milhares de duros sacrifícios poderia ser alcançada, sendo vivida então sem limitações, sem qualquer calculismo pragmático. No fundo, este ideal torna-se ameaçador não apenas para o sistema, mas para o carácter da maioria de nós. O maior triunfo do capitalismo foi ter sido capaz de reproduzir o homem como um ser à sua ...
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    3 hrs and 21 mins
  • O existencialismo publicitário. Uma conversa entre os dois monstros de plantão
    Sep 12 2025
    “Una mattina mi son' svegliato…” (Bella Ciao). Na terceira década deste vinte e um, parece que os manifestos de ordem literária são gravados em balas. As palavras com capacidade de ruptura, de suspensão viajam em trajectórias balísticas. Cada tiro carrega uma proposição, um código cheio de carga viral. O atentado ameaça tornar-se o mais pregnante género literário numa época de dissolução das linguagens simbólicas. Este género distingue-se pela concisão absoluta, efeito imediato, impacto sem intermediários. O manifesto literário foi absorvido pelo disparo, num momento em que, mais do que qualquer texto, a imagem determinou que os corpos são os verdadeiros signos, saturando o espaço mediático, num momento em que a aparência consome todo o sentido, em que a estética e a política se confundem. Neste quadro, descontando esses actos mais peremptórios, dos livros, valem os que são escritos com sangue, com a merda, com essas excreções biliosas, essas pedras cultivadas interiormente e que conseguem cortar a luz, devolver-nos a um mundo trevoso. No seu livro, Heróis, Assassínio em Massa e Suicídio, Franco ‘Bifo’ Berardi justifica o seu interesse por esses exemplos de brutalidade espectacular por reconhecer naqueles que a praticam a manifestação extrema de uma das tendências mais chamativas da nossa época: “Neles vejo os heróis de uma época niilista, uma era dominada por uma apavorante estupidez – a do capitalismo financeiro.” No entender deste filósofo italiano, nos nossos dias, o espaço do discurso épico foi ocupado pelas semio-corporações, esses aparatos dos quais emanam as ilusões que ocupam todo o horizonte de aspirações contemporâneas. “Aí reside a origem desta forma de tragédia tardo-moderna, nessa fronteira onde as ilusões são tomadas por realidade e as identidades percebidas como formas genuínas de pertença.” Para Bifo, a raça humana, deixando-se guiar por falsos heróis de enganosa substância electromagnética, perdeu a fé na realidade da vida e dos seus prazeres, e passou a acreditar apenas na infinita multiplicação das imagens. Ele serve-se de uma passagem do livro Os Condenados do Ecrã, em que Hito Steyerl assinala um ponto decisivo nesta transição, recordando o momento em que foi lançado o single Heroes, de David Bowie, em 1977: “Em 1977, a análise da situação iluminada pela banda punk The Stranglers proclama uma obviedade: o heroísmo terminou. Trotsky, Lenine e Shakespeare estão mortos. Enquanto os militantes de esquerda acorrem em massa ao funeral dos membros da Fracção do Exército Vermelho Andreas Baader, Gudrun Ensslin e Jan-Carl Raspe, a capa do álbum dos Stranglers mostra uma gigantesca coroa fúnebre de cravos vermelhos e declara: NÃO MAIS HERÓIS. Nunca mais. Mas também em 1977 David Bowie lança o seu single Heroes. Ele canta um novo tipo de herói, justamente a tempo da revolução neoliberal. O herói morreu, longa vida ao herói! Mas o herói de Bowie já não é um sujeito: é um objecto, uma coisa, uma imagem, um esplêndido fetiche — uma mercadoria imbuída de desejo, ressuscitada para além da miséria do seu próprio fim. Basta olhar para um vídeo de 1977 para perceber porquê: Bowie canta-se a si mesmo a partir de três ângulos simultâneos, com técnicas de sobreposição que triplicam a sua imagem; o herói de Bowie não só foi clonado, como sobretudo tornou-se numa imagem que pode ser reproduzida, multiplicada e copiada, um riff que circula sem esforço em anúncios que promovem quase qualquer coisa, um fetiche que embala como produto a glamourosa e impassível imagem de um Bowie para além dos dois géneros. O herói de Bowie já não é um ser humano maior que a vida, a cumprir missões sensacionais e exemplares; nem sequer é um ícone, mas um produto resplandecente dotado de beleza pós-humana: uma imagem e nada mais que uma imagem. A imortalidade deste herói já não provém da sua força para sobreviver a qualquer prova, mas da sua capacidade de ser fotocopiado, reciclado e reencarnado. A destruição alterará a sua forma e aparência, mas a sua substância permanecerá intacta. A imortalidade da coisa é a sua finitude, não a sua eternidade.” Face a este fenómeno seria possível identificar hoje um existencialismo de natureza puramente publicitária. Se ontem este nascia da náusea, e o homem lançado ao mundo era forçado a reconhecer-se livre, responsável, sem desculpa. Hoje, essa náusea foi estetizada, reciclada, convertida em branding. O que resta do ser não é o abismo da liberdade, mas a superfície brilhante do cartaz. Cada sujeito, em vez de se saber condenado à liberdade, descobre-se condenado à visibilidade. A nova metafísica é publicitária. A vida não se projecta — promove-se. O projecto sartriano, essa construção singular que respondia à contingência, converteu-se em storytelling padronizado. Já não me invento no risco de cada gesto, mas ...
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    3 hrs and 53 mins
  • Entre a merda e o infinito não cabe um grão de areia. Outra conversa com Andreia Farinha
    Jul 12 2025
    Com este título roubado ao Zetho, neste que é o derradeiro episódio antes de nos retirarmos para cumprir com as obrigações do período estival, deixamos aqui um trilho algo caótico, um episódio que vai pela linha incerta entre a desintegração e a degeneração. Há um mecanismo de fatalidade que temos procurado desmontar, mas é difícil saber até que ponto a compulsão para interpretar o mundo não acaba por nos tornar reféns dos seus processos, como esses queixumes a que tantos se entregam e que acabam por inspirar e alicerçar o inferno no qual se encerram. Há certamente, hoje, uma propensão excessiva para os diagnósticos, um modo de infelicidade que é produzida por esse falar fiado que impede qualquer impulso de romper com todo este infortúnio, que, assim, faz de nós os seus publicitários. "Não é elegante abusar da infelicidade; certos indivíduos, bem como certos povos, de tal modo se comprazem nela que desonram a tragédia", escreve Cioran num dos seus silogismos da amargura. Deste lado estamos exaustos, apanhados pelos ritmos, pulsões e padrões de forças que temos dificuldade em compreender. Seria bom se pudéssemos fazer férias noutro tempo, arrastar-nos até ao passado e buscar uma outra textura para a realidade. A actual dá-nos asma. O próprio tempo vem se tornando cada vez mais um problema. Diz-nos Camus que, "quando o observamos, o tempo não anda depressa. Sente-se vigiado. Mas depois aproveita-se das nossas distracções. É até possível que existam dois tempos: o que observamos e o que nos transforma." Hoje, temos amiúde a sensação de ser impossível tirar férias, como se não houvesse distância suficiente para conseguir arrancar este zumbido que se nos infiltrou no sangue. Por vezes, busca-se aquele olhar que se demora entre o desencanto e a compaixão pelo mundo, como se o olhássemos a partir de um outro planeta. E se a contemplação do caos acaba por dar cabo de toda a confiança ou ilusão, para alguns só restam as boas maneiras, uma certa elegância, ou, à falta disso, um puro estilo, que não seja uma mera afectação, mas isso que alimentava nos espíritos melancólicos do século dezanove a ideia de que este acaba por ser um substituto da bondade. Enquanto as manias tirânicas do nosso tempo e o egoísmo daqueles que vivem fascinados com as possibilidades que ele oferece nos fazem sentir a mais, como estrangeiros incapazes de sentir qualquer apelo por estes costumes e valores, começamos a ter a sensação de que aquilo que distingue a cultura desta época é o facto de esta só poder ser adquirida em segunda-mão, através dos rumores e intrigas ou da nostalgia que ela provoca noutras pessoas. Pela nossa parte, estamos comprometidos com os estranhos, com esse anonimato familiar que é sempre possível dissimular, tentando livrar-nos das imposturas do ego. Sentimos falta de lugares de que ouvimos falar, desses cafés onde iam parar os náufragos de cada época, que apareciam ali sozinhos dispersos pelas mesas, devastados pela sensação de desequilíbrio entre os seus espíritos e o mundo. Claudio Magris fala-nos desses cafés que eram como hospícios para aqueles que carregam no sangue essas sombras separadas do tempo. A verdadeira conversa, que podia ser uma distracção afável, começa a ser um bem demasiado escasso. Sem a escuta, sem esse efeito de transfusão de sombras, as palavras soam cada vez mais enfraquecidas. “Hoje em dia já quase não se pensa — só se fala", anotava Musil nos seus diários. “A palavra é, cada vez mais, um adereço. Diz-se tudo e o seu contrário com a mesma confiança retórica”, acrescentava no seu grande romance inacabado. E nem é propriamente o que se diz que nos desgasta, mas a vagueza, a inércia, que acaba por gerar esse grau de convicção puramente histérico, esse fluxo morno de convicções instantâneas, que cresce como uma vegetação pegajosa sobre tudo o que antes exigia silêncio. O país (mas qual ao certo?) parecia ter sido tomado por uma peste sem micróbio. Embriagados pelo desamparo, confundindo expressão com existência, todos falavam, ninguém hesitava. Havia qualquer coisa de obsceno no modo como os discursos se substituíam à atenção, como se as palavras servissem não para indicar, mas para evitar. E a linguagem, esse instrumento outrora tão delicado — como a vareta de um físico ou a pena de um calígrafo chinês —, fora reduzida à função de cobertura: cobrir a ausência, disfarçar o abismo, não dizer. Talvez fosse isso, pensava Ulrich, o novo ideal espiritual da época: dizer tudo para não escutar nada. Falar não por excesso de alma, mas por défice de realidade. Farta de tudo isto, depois do expediente, a Andreia Farinha aceitou a proposta indecente que lhe fizemos de vir rematar a série, e veio desacertar-nos ainda mais as voltas, trazer a desordem de que é íntima como poucos, reconhecer-se na figura do criminoso Moosbrugger, gozando toda a licença da ...
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    3 hrs and 46 mins
  • A tentação do fracasso. Outra conversa com Guilherme Pires
    Jul 5 2025
    Temos de começar pela falência. Pior seria reforçarmos este nauseante heroísmo subsidiado em que temos andado. Estamos a querer enganar-nos sobre o papel que supostamente ainda cumpre aos escritores e aos artistas desempenharem de forma a que se consiga um despertar das consciências, quando, na verdade, estamos bem para lá disso. As consciências já viram o que tinham a ver, e não descansaram até se verem livres desse peso. Como assinalava Guy Debord, “todos os espíritos minimamente atentos do nosso tempo concordam quanto a esta evidência: tornou-se impossível à arte sustentar-se como actividade superior — ou mesmo como actividade de compensação à qual se possa entregar alguém, com honra”. E prossegue: “A causa desse definhamento é, visivelmente, o surgimento de forças produtivas que exigem outros modos de produção e uma nova prática da vida. Na fase de guerra civil em que nos encontramos, e em estreita ligação com a direcção que vislumbramos para certas actividades superiores do porvir, podemos considerar que todos os meios de expressão conhecidos vão confluir num movimento geral de propaganda, que deve abranger todos os aspectos — em perpétua interacção — da realidade social. Quanto às formas e à própria natureza de uma propaganda educativa, várias opiniões se defrontam, geralmente inspiradas nas diversas políticas reformistas actualmente em voga. Bastar-nos-á declarar que, para nós, tanto no plano cultural como no plano estritamente político, os pressupostos da revolução não estão apenas amadurecidos — começaram a apodrecer. Não apenas o retrocesso, mas também a prossecução dos objectivos culturais “actuais”, por dependerem de facto das formações ideológicas de uma sociedade passada que prolongou até hoje a sua agonia, só podem ter eficácia reaccionária. Apenas a inovação extremista possui justificação histórica.” Em grande medida pode-se fazer corresponder o mundo digital a um desejo de deixar de justificar-se, passando a estabelecer apenas ligações intuitivas, precárias, a partir de um mundo de fragmentos descontextualizados, justapostos, passíveis de serem indefinidamente recompostos, sem que seja necessário ou desejável compreender a relação que os inscreve no livro de onde foram extraídos. As nossas mentes adaptaram-se a um regime virológico, foram abandonando a consistência dos corpos, furtando-se à função realista, a essas resistências cronológicas e às simulações históricas, para um campo onde todas as hipóteses valem o mesmo, tudo é perfeitamente acidental. Com a interferência de diferentes níveis de informação, realidades absurdamente contraditórias, a justaposição dessas expressões autónomas supera os seus elementos primitivos e dá origem a uma organização sintética de eficácia superior. A tal civilização do livro ruiu em poucas décadas, e a literatura está tão distante da nossa experiência concreta como estaria uma época pré-histórica. Na sua acelerada podridão, o mundo torna-se cada vez menos real para nós, e as nossas mentes parecem infectadas de ideias e conceitos desgarrados de qualquer experiência, e que podem, por isso, ser abandonados sem produzir qualquer abalo profundo, desde logo porque deixámos de ter em nós convicções a esse nível. O que resiste da leitura é um estádio paródico de apropriação e acumulação de elementos desviados, o qual, longe de querer suscitar ainda algum escândalo ou troçar seja do que for, em vez de evocar uma obra original, exprime, pelo contrário, a nossa indiferença perante um original esvaziado de sentido e já esquecido, restando apenas aquele apelo de ferir a ordem de forma a libertar um certo sublime. A memória não é já o elemento estruturante, tendo sido arquitectada de forma a produzir um todo coerente. A estrutura é o que cede, à medida que se impõem as leis do desvio. Teremos de mergulhar muito mais fundo na nossa incompreensão, rejeitar firmemente a herança clássica, e o carácter comedidamente racional dos nossos reflexos e réplicas, de forma a alcançarmos um grau de deriva realmente séria. Nem sei o que possa ou não vir a propósito disto, mas apetece trazer aqui uns versos de Reynaldo García Blanco, nem que seja apenas para abandonar esta comissão onde se regateia aquele mundo que estaríamos a perder, mas a que ninguém pretende regressar. “Subsídio nocturno. Tresnoitados assalariados./ Boémios contra-sol. Partem por líquidos que acabarão/ com o estômago que foi em tempos metal e dura madeira/ do bosque./ Despertos e musicais dormem ao/ crepúsculo e sonham com as mulheres que não têm./ Partem em fuga rumo à morte num carro âmbar. Partem os tresnoitados com a música âmbar/ e um cão âmbar.” Talvez o clima marroquino que aí vem faça de nós uma nação mais propensa a essas alucinações com que o deserto caça os homens. Então, a nossa cultura não terá escolha ...
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    3 hrs and 15 mins
  • Das tribos do cinema ao humor corporativo. Uma conversa com Beatriz Silva Pinto
    Jun 27 2025
    Depois do terror, segundo ouvi dizer, as crianças aprendem a ver no escuro. É uma espécie de talento que nasce da necessidade de controlar a proliferação de imagens que o medo nos sugere. São cineastas dessa circunstância intolerável. Porque o escuro admite o pior. Da mesma forma há quem fale consigo mesmo, procure uma ordem qualquer de que se possa ocupar, às vezes retoma uma conversa mal resolvida, responde a alguém, confronta uma e outra vez o seu exausto repertório de truques, vai buscar cenas, planos de filmes e investiga tudo aquilo que sem se ter dado conta aprendeu de cor, a posição de cada objecto, que agora adquirem uma estranha densidade, um peso extraordinário. Saber convocar o sono é um dom, combater uma circunstância desfavorável, escavar um túnel a partir da cela do tédio. Era assim que Cyril Connolly explicava a necessidade da arte, defendendo que esta “é a tentativa mais nobre do homem para preservar a Imaginação do Tempo, para fabricar brinquedos mentais inquebráveis, bolos de lama que durem”… O cinema é um assunto das infâncias que mais foram obrigadas a escarafunchar certas feridas, a aguentar a imensa desolação da realidade, sobretudo para quem tem uma natureza atenta. O cinema é esse território dos mudos, dos que aprendem o valor de um enquadramento, de uma sequência, dos cortes, da montagem. Os que se deram ao trabalho de fazer do olhar uma lição de história. Se a uma criança, quando lhe perguntam o que quer ser quando for grande, nunca ouvimos a resposta – “Vou ser crítico de cinema” –, como notou, certa vez, François Truffaut numa entrevista, talvez isso se explique por estar longe de supor que haja outros que não precisam de mais estímulos, pois fizeram da memória o seu projector, e tiram prazer de fazer do cinema o motivo de longas exposições, conversas infinitas. São muitos, na verdade, os que se encontram na mesma situação, consideravelmente treinados desde crianças a ver filmes, a pensar sobre eles e, mais tarde, com os anos, ao encontrarem a sua tribo, a falar deles, a discorrer durante horas sobre cada detalhe, mas depois, até por esse excesso, são incapazes de passar para o outro lado, ter a audácia ou a veleidade imbecil de fazer um filme. Há uma espécie de erudição culpada, que em vez de iluminar, pesa intimamente. Em vez de se transformar num balanço atrevido, acumula-se como dívida, pede imensas desculpas, retira-se. É o saber do crítico que lê demais, vê demais, anota demais — e escreve de menos ou escreve como se estivesse sempre a dever explicações. É um saber que se constrange, que se encurva. Em vez de cortar na carne da obra, contorna-a com aparato técnico, com um dicionário em punho e medo de parecer ingénuo. Esquece, assim, que a verdadeira erudição é leve, ofensiva, cortante. Esta é a condição do espectador que perdeu a inocência e, com ela, a coragem de errar, de improvisar, de sentir sem aparato. Guillermo Cabrera Infante fala-nos de um crítico que sentia necessidade de atafulhar cada texto de um tal excesso de referências que, para lá do alarde da erudição, lhes emprestavam uma morbidez própria de quem gosta de arrastar cadáveres ou trocar restos entre túmulos, fazer combinações bizarras nas horas de tédio em que lhe é dado zelar por um desses arquivos que aguardam a completa digestão das larvas. Vale a pena reproduzir o texto… “Caín gostava de fazer frequentemente um grande alarde erudito. A sua erudição chegava ao ponto de dizer que H. C. Robbins Landon estava a completar o catálogo total da música de Haydn; que Tchékhov conheceu Tchaikovsky em São Petersburgo, no início de Dezembro de 1888; que a modelo preferida de Delacroix se chamava Émilie Robert; que, se o jazz nasceu nos bordéis de Nova Orleães, foi a ordem da Secretaria da Marinha norte-americana, em 1917, ao encerrá-los, a ocasião para a sua difusão e desenvolvimento posterior. Etc. Parece-me que Caín encontrava estas citações ao acaso, nas suas leituras caóticas e, por isso mesmo, múltiplas, e que as ia anotando nas críticas à primeira oportunidade, viessem ou não a propósito. Um dia disse-lho. A resposta dele deixou-me gelado (tão gelado que, se tivesse tido sabor, não estaria aqui a contar isto: estávamos à porta de uma escola), porque respondeu-me com uma citação de Chesterton: ‘Afinal, creio que hoje não me vou enforcar’, foi o que disse.” Onde queremos chegar? Essa costuma ser uma interrogação bastante cruel. Talvez ainda seja o mesmo problema do início, a criança que faz filmes para si, inventa o cinema para não ser absorvida pelo escuro. Neste episódio, vamos traçar um percurso entre esse desejo de ser encantado, entre a descoberta do cinema como arte produtora de uma memória defensiva, e um enredo formidável de correspondências, imagens que nutrem uma espécie de sistema imunitário e de resposta da imaginação contra circunstâncias ...
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    4 hrs and 8 mins