Escrever a história em mortalhas de cigarro. Uma conversa com Ricardo Noronha cover art

Escrever a história em mortalhas de cigarro. Uma conversa com Ricardo Noronha

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Fala-se muito de liberdade por estes dias. A todos os propósitos, celebra-se essa estafada ideia de que se gozam hoje conquistas feitas a grande custo pelas gerações que nos antecederam, mas talvez fosse importante colocar a mesma pergunta certa vez feita por Foucault: “Qual é o campo actual das experiências possíveis?” Se a liberdade se tornou meramente hipotética, uma espécie de abstracção, algo que partimos o princípio de que gozamos, podemos ser levados a prescindir de testar essa convicção. Talvez nunca tantos se tenham saciado dessas promessas, sendo isso o suficiente para não irem mais longe nem testarem a sua disposição moral divergindo desse grande quadro de inércia que nos serve de referência. Que potência exercemos diariamente, nem que seja numa condição virtual, questionando o enredo a que estamos submetidos? Talvez a liberdade se tenha tornado uma noção demasiado abstracta, sendo esse o principal elemento de dissuasão, quando tudo se processa num nível hipotético. De facto, somos todos muitíssimo livres. Mas talvez fôssemos menos se realmente passássemos dos princípios aos actos. No entender de Kant a liberdade “é a autorização para não se obedecer a nenhuma outra lei exterior que não sejam aquelas às quais pude dar o meu assentimento”. Se partirmos daqui podemos reconhecer que a tal liberdade potencial contrasta com a falta de ânimo para oferecer resistência às orientações que nos vão seduzindo, convertendo, coagindo. Talvez Gramsci fosse mais livre na prisão do que a maioria de nós o somos no nosso dia-a-dia. Leia-se o que Italo Calvino escreveu sobre a edição das Cartas da Prisão do fundador do Partido Comunista de Itália: [As Cartas] têm as características do livro de memórias e do grande romance: a sua amplitude e o cruzamento de mundos e de temáticas. O prisioneiro revolucionário analisa minuciosamente todas as pequenas manifestações da vida que consegue captar a partir do sepulcro da sua cela: os pardais amestrados, as flores da chicória, as fotografias das suas crianças. Ele analisa qualquer fenómeno cultural, do idealismo crociano aos romances policiais, formulando interpretações novas e úteis, utilizando também todo o seu património de memórias regionais, as lendas, os costumes, os dialectos da sua Sardenha, que revive com um gosto só aparentemente anedótico.” A liberdade está longe de ser um estado natural, e daqui decorre que esta tenda a esboroar-se assim que não haja um constante esforço de a levar a efeito. As lógicos da poder passam sempre por produzir a timidez daqueles que lhe estão submetidos, e é evidente que, à medida que a revolução começa a desvanecer-se, a cair na rotina, deixa de vigorar como um acontecimento, atestando uma virtualidade que não pode ser esquecida. Hoje, todos os esforços no sentido de celebrar “as conquistas de Abril” fazem por substituir os cravos por rosas brancas, limitar o alcance da revolução e moderar o seu ímpeto, retirando-lhe toda a actualidade e a força anunciadora de um desejo que está ainda por cumprir-se. O signo que tem vindo a afirmar-se cada vez mais e que pretende fazer-nos renunciar às experiências que foram possíveis durante o período de dezoito meses do processo revolucionário é o do 25 de Novembro, que, como assinala Ricardo Noronha, “assumiu a forma de um evento fantasmagórico porque os seus actores – os vencedores como os vencidos – projectaram sobre os acontecimentos tantas camadas discursivas que a sua interpretação se tornou impossível sem um laborioso trabalho filológico e arqueológico”. E acrescenta que este é também um evento fantasmagórico “porque a sua evocação quebra a ténue membrana que separa o passado do presente, transportando em si um juízo sobre tudo o que antecedeu e se sucedeu àquelas horas tão saturadas de ocorrências, condensando em si a história de todas as revoluções e contrarrevoluções”. Para Noronha a evocação desta data “assombra ainda os cérebros dos vivos, servindo a um tempo enquanto fábula moral e mito fundador, efeméride comemorativa e epígrafe fúnebre”. Na verdade, e contrariamente ao que diz a direita, não foi a possibilidade de uma ditadura de sinal contrário ao do Estado Novo que foi afastada, mas apropria construção de um repertório de acção política, num período em que ganhou expressão o poder popular e inúmeras acções de democracia directa. Durante o período que fez de um golpe de Estado militar uma verdadeira revolução, o que se viu ganhar corpo foi “uma vaga tumultuosa de contestação, insubordinação, auto-organização e radicalização, que não só empurrou o Movimento das Forças Armadas para lá dos seus propósitos iniciais como abalou profundamente os alicerces do capitalismo português”, escreve Noronha em “A Ordem Reina sobre Lisboa”. “Durante dezoito meses, as ordens foram desobedecidas, as proibições ...
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